Violência no Campo
Invasão Zero ensina táticas de violência contra indígenas e sem-terra em fórum na Bahia
Investigado pela PF por suspeita de formação de milícia, Movimento Invasão Zero defende autodefesa armada e ensina como fazer ataques sem gerar provas; movimento tem apoio de parlamentares da extrema direita e intensifica ofensiva contra Reforma Agrária

Por Daniel Camargos
Do Repórter Brasil
ESTRATÉGIAS DE CONFRONTO contra indígenas e sem-terra marcaram o primeiro Fórum Nacional do Movimento Invasão Zero (MIZ) – grupo formado para assessorar produtores rurais envolvidos em disputas por terra. O evento foi realizado no último sábado (7) em um hotel à beira-mar em Ilhéus, na Bahia.
Investigado pela Polícia Federal sob suspeita de atuar como milícia rural e qualificado por uma Relatoria da ONU como “movimento armado”, o grupo defendeu no fórum ações ilegais de despejo e destruição de acampamentos rurais, associou movimentos sociais a práticas criminosas e incentivou fazendeiros a reagirem com agressividade em disputas por terra.
“Tocou fogo em moto, tocou fogo em tudo que tinha deles e botou tudo para correr, porque bandido se trata assim”, afirmou o deputado federal Coronel Meira (PL-PE), ao descrever uma ação de fazendeiros contra ocupantes de terra em Pernambuco. “Bandido bom é bandido morto”, disse o parlamentar.
Na plateia havia dezenas de pessoas – cerca de 280, segundo a organização –, entre fazendeiros, vereadores, deputados estaduais e federais. No palco, discursos que trataram o MST como “organização criminosa”, indígenas como “falsos índios” e ocupações como “terrorismo”.
As declarações eram permeadas também por estratégias sobre como não gerar provas nas ações. O deputado federal Marcos Pollon (PL-MS), por exemplo, que também é advogado e atua em disputas judiciais por terra há mais de 20 anos, recomendou aos produtores que evitem se manifestar de maneira ostensiva nas redes sociais, para não prejudicar sua defesa legal. “A narrativa é a primeira guerra que você vai ter que vencer”, afirmou o parlamentar.
“Se você tem um perfil nas redes sociais que fala que vai matar todo mundo, vai atirar nos outros, um perfil beligerante, ainda que você tenha atuado em um cenário de legítima defesa, o que acontece? Você vai ter essas manifestações expostas pelo Ministério Público no seu júri, o que é muito prejudicial. Então, mantenha o perfil baixo, não seja agressivo”, ensinou.

Líder do movimento Proarmas, o parlamentar abordou até a distinção entre o direito à propriedade e direito à vida, e como um produtor deve se comportar diante disso. “Você dizer que vai utilizar meios letais para defender a propriedade rural, tecnicamente, está errado”, disse. “Sempre quando você defende a posse e a propriedade, você está utilizando meios não letais para fazê-lo. A única autorização que você terá para utilizar meios potencialmente letais é se eventualmente a sua integridade física ou a de terceiro foi colocada em perigo”, continuou.
Para o parlamentar, é importante evitar problemas judiciais para garantir a propriedade da terra. “Depois que judicializou, no atual cenário, é muito complexo você retomar a posse da sua área”, disse. “O pessoal distorce o que a gente fala dizendo que nós incentivamos a atirar nas outras pessoas e não é esse o objetivo.”
Durante as mais de quatro horas de evento, os palestrantes ignoraram o assassinato da liderança indígena Nega Pataxó, morta a tiros em janeiro de 2024 no sul da Bahia. O crime foi atribuído a uma ação de cerca de 200 fazendeiros, com participação de policiais militares, segundo investigação da PF
A vítima, liderança do povo Pataxó Hã-hã-hãe, foi atingida por um tiro disparado por José Eugênio Fernandes Amoedo, de 21 anos, filho de um fazendeiro. O Invasão Zero é investigado como articulador da ofensiva.
Amoedo foi solto após sete meses de prisão preventiva. A decisão judicial reconheceu que ele confessou ter portado a arma e efetuado os disparos, mas considerou que não havia persistência do conflito e que ele era réu primário.
O fundador e coordenador do grupo, Luiz Uaquim, celebrou a libertação à época: “A liberdade de Eugênio representa a nossa liberdade”, declarou em vídeo obtido pela Repórter Brasil.
A coordenadora nacional do movimento, Dida Souza, chamou os indígenas de “falsos”. “A Bahia está acabando porque hoje qualquer um pinta o rosto, qualquer um bota um cocar na cabeça e diz que é índio. Nós temos que dar um basta. Existe um grupo de fake índio que está acabando com a Bahia”.
O assassinato de Nega Pataxó não foi caso isolado. Desde 2012, o povo Pataxó Hã-hã-hãe contabiliza 32 mortes violentas. A Polícia Federal conduz o inquérito sobre o assassinato de Nega Pataxó e investiga o Invasão Zero por suspeita de formação de milícia rural. Testemunhas relataram à PF que policiais militares facilitaram a ação de fazendeiros armados contra indígenas.
O Ministério Público Federal, que acompanha o caso, vê indícios de que o grupo atua como um “esquema paramilitar financiado por grandes latifundiários” e cobra medidas urgentes do Estado para conter a escalada de violência. Em nota conjunta com defensorias públicas, divulgada em fevereiro de 2024, o MPF apontou a existência de uma milícia policial no sul da Bahia ligada à repressão de retomadas de terra por povos indígenas.

Radicais com o pé na areia
O fórum foi realizado no hotel Praia do Sol, à beira-mar, e serviu também para fortalecer a identidade do grupo: bonés e camisetas com a marca Invasão Zero foram vendidos ao longo do dia.
Entre os discursos foi feita uma defesa explícita do chamado “desforço imediato” — retomada da posse de terra sem ordem judicial. Já para a Defensoria Pública da União na Bahia, a tátitca é ilegal e sem respaldo da Justiça, realizada por um grupo de “gênese criminosa”.
A T (Comissão Pastoral da Terra) compara o Invasão Zero à União Democrática Ruralista (UDR) fundada na década de 1980 pelo atual governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil). Segundo a pastoral, a nova roupagem do antigo movimento ruralista “vem coordenando a organização dos grupos armados para atacar as famílias em luta”.
No Caderno de Conflitos do Campo Brasil 2023, a T apontou que o grupo utiliza táticas de agitação contra povos e movimentos sociais, como o fechamento de estradas, a colocação de outdoors com mensagens hostis e campanhas em redes sociais. O objetivo, segundo a entidade, é propagar desinformação e deslegitimar os direitos indígenas ao negar sua ancestralidade.
“Nós somos tachados como violentos, mas os mortos estão sempre do nosso lado”, afirma Evanildo Costa, representante da direção nacional do MST na Bahia. Ele cobra uma atuação mais firme do poder público na investigação dos responsáveis pela violência no campo.
Costa também compara o Invasão Zero a uma versão atualizada da antiga UDR, classificando-o como uma organização criminosa. “Além dos fazendeiros, seus membros estão infiltrados em prefeituras, assembleias legislativas, no Congresso e nas forças policiais”, denuncia.
O dirigente do MST também critica a postura dos governos petistas, tanto no âmbito federal quanto estadual, e exige mais coragem para enfrentar a pressão dos setores ruralistas. “Não queremos alimentar esse conflito, pois ele favorece o ambiente de violência que impulsiona políticos de extrema direita, que se elegem explorando essa tensão”, conclui.

Grupo afirma agir dentro da legalidade
Procurado pela Repórter Brasil, o MIZ afirmou que “jamais será um movimento de milícia” e que “nunca agiu em defesa da propriedade sem a presença da Polícia Militar”. A organização declarou que todas as ações são realizadas dentro da legalidade e que os grupos que eventualmente agem de forma independente devem responder por seus próprios atos.
Sobre o uso do chamado “desforço imediato”, o grupo disse que “é lei e um direito de todos”, mas reforçou que não interfere em reintegrações determinadas pela Justiça.
A respeito da morte da liderança indígena Nega Pataxó, o movimento alegou que não teve participação na ação que resultou no crime e atribuiu a ofensiva a produtores locais que, segundo o grupo, “apenas usaram o grupo de WhatsApp do MIZ de Itapetinga para solicitar ajuda”. O Invasão Zero afirmou ter fornecido às autoridades todas as publicações feitas em redes sociais.
Em relação à comemoração da soltura de José Eugênio Fernandes Amoedo, autor do disparo que matou a indígena, pelo fundador do MIZ, a alegação foi de que houve um “equívoco” e negou que o acusado seja integrante da organização. Afirmou ainda que cabe à Justiça apurar se houve legítima defesa.
Sobre as acusações do Ministério Público Federal, que vê o grupo como parte de um “esquema paramilitar financiado por grandes latifundiários”, o Invasão Zero respondeu que funciona com contribuição espontânea de R$ 20 e comparou sua estrutura à do MST: “A diferença é que um é de invasores e o outro, de produtores”. Leia as respostas na íntegra.
Movimento é ‘desprezível’, segundo relatora da ONU
Durante visita oficial ao Brasil em abril de 2024, a relatora da ONU Mary Lawlor reuniu-se com o cacique Nailton Muniz Pataxó Hã-hã-hãe em Salvador (BA), onde ouviu relatos diretos sobre a ação do Invasão Zero na morte de sua irmã, Nega Pataxó.
Ela qualificou o movimento como “desprezível” e expressou profunda preocupação com o uso de grupos armados para reprimir retomadas, alertando que os ataques estão se intensificando.
Em seu relatório final, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos em Genebra, na Suíça, em março, Lawlor reforçou que há “fortes indícios de financiamento de grupos armados e articulação em rede nacional”. Ela pediu que o governo “se mova de forma mais rápida, mais ampla e mais direta”, especialmente priorizando a remoção de invasores, demarcação de territórios e responsabilização por crimes ambientais, sob o risco de a impunidade levar à repetição contínua dessas violações
“Se é desprezível, ela (Lawlor) não deve se preocupar. Quanto ao fato de chamar o MIZ de grupo armado, ela poderá ser indiciada por falsa acusação”, respondeu o movimento.
O CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos) criou um Grupo de Trabalho para investigar a violência e a criminalização contra movimentos sociais no campo, com foco em ações de grupos como o Invasão Zero.
A equipe conta com representantes da Defensoria Pública da União, da Ouvidoria Agrária Nacional e de comissões voltadas à defesa dos povos indígenas, quilombolas e de trabalhadores rurais em áreas de conflito.

Ofensiva no Legislativo
Além das ações no campo, o Invasão Zero articula uma ofensiva legislativa no Congresso. Atualmente são 38 projetos de lei diretamente ligados ao movimento, quase todos assinados por parlamentares do Partido Liberal (PL), segundo levantamento realizado pelo Najup (Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
Essas propostas incluem transformar ocupações de terra em crime hediondo, impedir que os chamados “invasores” recebam benefícios sociais ou participem de concursos públicos, além de proibir que o Estado adquira alimentos produzidos por assentamentos.
Há ainda projetos que autorizam a polícia a realizar despejos apenas com a apresentação de um título de posse, sem necessidade de decisão judicial, ampliando a possibilidade de repressão sumária contra ocupações. Outros preveem a responsabilização de autoridades por “omissão” e a suspensão da titulação de terras quilombolas.
Durante o fórum, foi apresentado pelo deputado estadual Leandro de Jesus (PL-BA) o plano Alerta Rural, que inclui botão de pânico, geolocalização e um mapa de propriedades para “antecipar ações terroristas do MST”. Ao acionar o botão, a vizinhança cadastrada e a direção do Invasão Zero serão alertadas por WhatsApp e SMS.
Coordenadora tem dívida milionária com a União
Apesar de se apresentar como defensora da legalidade, a coordenadora nacional do grupo, Dida Souza, acumula R$ 25,9 milhões em dívidas com a União, segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Ela é herdeira de um império de terras de cacau e gado no sul da Bahia.
Questionado sobre a dívida, o grupo respondeu: ‘Dever não é crime, crime é invadir propriedade’. O grupo também alegou desconhecer o débito.
O movimento, criado em março de 2023, afirma ter mais de 15 mil associados e presença em pelo menos 200 municípios. Atua por meio de núcleos regionais e grupos de WhatsApp, nos quais são coordenadas ações para desocupar e impedir ocupações de terra. A cartilha interna do grupo orienta a coleta de informações sobre supostas invasões, acionamento de produtores vizinhos e mobilização antes da chegada da polícia.
A articulação política do Invasão Zero inspirou a criação de uma frente parlamentar informal no Congresso, comandada pelo deputado federal Zucco (PL-RS). Quando foi lançada, em março de 2023, contou com a participação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O movimento também se espalha por assembleias legislativas estaduais. Já há frentes informais com o nome do grupo em Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.